Lei dos Distratos, o primeiro grande teste

Lei dos Distratos, o primeiro grande teste

11/07/2022
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Esportes coletivos sempre tiveram minha admiração. Na adolescência, anos dedicados aos treinos de vôlei me ensinaram, na teoria e na prática, que o combinado não sai caro e que entender as regras do jogo me permitiriam saber como atuar em quadra, qual meu papel no time, o impacto de minhas ações junto aos meus colegas e os motivos que norteavam as estratégias do treinador.

Cada posição tem uma função definida; se você for o levantador é seu papel distribuir ou armar os ataques da sua equipe; se não o fizer, a bola cai no chão e o ponto é do adversário. As regras devem ser observadas por todos, sem exceção. Se você ganha, o time ganha. Se você não fizer o seu papel ou cumprir as regras do jogo, o time todo é prejudicado.

Mutatis mutandis, a incorporação imobiliária deve seguir o mesmo caráter coletivo acima exposto e, principalmente, do início ao fim desta atividade ter regras claras e que sejam cumpridas por todos os seus participantes, o que é fundamental para o sucesso da obra.

O incorporador, tal qual o técnico, deve ter profundo conhecimento, cumprir e disseminar as regras aplicáveis a todas as etapas da atividade de incorporação: desde o momento da aquisição do terreno até a entrega das chaves e responsabilidades do pós-obra. São elas que permitirão, ainda, definir a estratégia do jogo por meio do estudo de viabilidade que, dentre outros aspectos, mensura o fluxo de caixa, número de vendas, capital necessário e demais vertentes que o farão decidir pelo prosseguimento ou não da incorporação.

A inexistência de regras, por sua vez, pode deixar o jogo caótico. Uma espécie de Vale Tudo do esporte e do mercado analisado. No âmbito da incorporação imobiliária, isso pôde ser vivenciado após a crise de 2014, quando houve um aumento significativo no número de distratos e judicialização em torno do tema.

Sem previsões no ordenamento jurídico, as multas eram estabelecidas contratualmente em percentuais diferentes e incidentes ora sobre o montante pago, ora sobre o valor total do contrato. Questionava-se a devolução, ou não, da comissão de corretagem, assim como o momento de devolução dos valores, se imediatamente ou ao final da obra.

As decisões judiciais, por sua vez, eram divergentes inclusive em um mesmo Tribunal. Algumas decisões determinavam a retenção de 10%, 15% ou 20% sobre o valor pago, sendo que o momento da devolução foi objeto da Súmula 543 do STJ, consolidando-se o entendimento no sentido de ser devida a devolução imediata para contratos submetidos ao Código de Defesa do Consumidor. Em um ou outro caso, não se consideravam os prejuízos advindos de tais decisões.

Em decorrência deste cenário e após diversos debates entre os participantes do mercado imobiliário, órgãos de classe e representantes populares, foi publicada a Lei 13.786/18, que alterou sensivelmente as Leis 4591/64 (Incorporação Imobiliária) e 6776/79 (Parcelamento do Solo Urbano), estabelecendo regras claras a serem adotadas pelas partes no que diz respeito aos distratos de compromissos ou contratos de venda e compra de unidades imobiliárias em incorporação ou parcelamento do solo urbano.

Referida legislação estipulou que na incorporação imobiliária o limite de retenção dos valores pelo Incorporador é de até 25% dos valores pagos pelo adquirente e a devolução deve ocorrer após 180 dias do desfazimento do contrato ou, se o empreendimento estiver sob o regime do patrimônio de afetação, o limite será de até 50% sobre os valores pagos e a devolução ocorrerá em até 30 dias após o habite-se. Por sua vez, para a compra e venda de lotes, a Lei determinou o limite de até 10% sobre o valor atualizado do contrato, no prazo de 180 dias após o término das obras ou, se concluídas, em até 12 meses após a formalização da rescisão.

A legislação também prevê a possibilidade de cobrança da taxa de fruição pelo uso do imóvel enquanto o bem estiver em posse do comprador ? assim entendido o tempo entre o distrato e a devolução do imóvel. Para as incorporadoras a taxa é de até 0,5% e para as loteadoras de até 0,75%, incidentes sobre o valor atualizado do contrato.

Por sua vez, passa o incorporador a responder pelo pagamento de multa em caso de atraso na entrega das unidades em prazo superior ao permitido legalmente.

De 2018 em diante observou-se recordes de lançamentos e vendas de unidades imobiliárias. Neste momento, é chegada a hora da entrega de tais unidades em um cenário de pós pandemia em que muitos dos adquirentes tiveram redução de rendimentos, alteração no modo de vida ou encontrarão maiores restrições à obtenção de financiamento. Este mix acende o alerta para um possível aumento no volume de distratos e, consequentemente, o primeiro grande teste da Lei 13.786/16 no Judiciário.

No voleibol, cabe à equipe de arbitragem - formada pelos árbitros, juízes de linha e apontadores ? fazer cumprir as regras do jogo, possibilitando, assim, uma competição justa e transparente; ao passo que para o mercado imobiliário o Judiciário fará com que a legislação seja cumprida e a segurança jurídica mantida.

Apontamos, porém, que recentes decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo têm alterado o percentual da multa pactuada em contratos de aquisição de lotes, modificando a base de cálculo da penalidade, legalmente estipulada sob o montante do valor total do contrato, para que passe a incidir sobre o montante das prestações.

Em um contexto de crise é comum que alegações fundamentadas na atual situação financeira do consumidor façam grande barulho. Contudo, o barulho pode ficar ainda maior na medida em que a proteção da empresa e, principalmente, dos demais participantes da atividade possam ser comprometidas em detrimento de poucos.

A decisão do comprador em não prosseguir com seu contrato não traz consequências apenas para ele, que deixará de ter seu imóvel, mas também para todos aqueles que estavam no mesmo time a que ele pertencia até então. A redução de entrada de recursos em caixa freará o desenvolvimento da obra, a redução do número de unidades vendidas afeta o VGV, cujo índice é fundamental para a obtenção de financiamento à produção e, com muito mais preocupação e impacto, é o que causa àqueles que permanecem pagando por seus contratos e poderão receber suas unidades com atraso ou, no pior cenário, sequer recebê-la.

Somado a isso, é importante lembrar que o percentual permitido legalmente e constante no contrato celebrado entre as partes figura no estudo de viabilidade do projeto, permitindo que a empresa mensurasse o tamanho do impacto financeiro na hipótese de distratos. Mudar a regra do jogo após seu início é culminar no insucesso da atividade, incentivando o ingresso de novas ações judiciais e aumentando o preço do produto final de forma a dificultar a aquisição da casa própria pelo restante da população.

Quando, durante um jogo, o cenário favorável se altera, o pedido do técnico não é para que o árbitro mude as regras do jogo, mas sim de tempo para que possa reorganizar a equipe do ponto de vista tático, físico e emocional sem, contudo, alterar as regras a que se comprometeram desde o início da partida. Os árbitros somente irão interferir caso se quebrem as regras.

Ocorre da mesma forma na incorporação imobiliária. Aquele para quem o cenário se alterou deve, de imediato, utilizar o momento para expor o que acontece, se reorganizar e propor uma alternativa, sempre observando as regras previamente pactuadas. Alternativas não faltam, para ambos os lados.

Especificamente no tocante ao distrato, pode-se analisar desde o alongamento do prazo para pagamento, eventual período de carência ou até mesmo a substituição do comprador. A judicialização deve ser vista como última alternativa de cumprimento daquilo a que se obrigaram e não como uma forma de alterar o que foi pactuado.

E, uma vez judicializada, a análise dos impactos para o comprador, incorporador e todos os demais envolvidos no negócio jurídico é primordial, assim como diferenciar o consumidor genuíno daquele que compra para investimento são quesitos de extrema importância. Os impactos sociais, especialmente ao considerarmos que se trata de um dos mercados que mais contribuem para a geração de emprego do País, são outro ponto relevante. E, por fim, mas não menos importante, decisões que privilegiam apenas um lado da balança são, em regra, um incentivo à judicialização e descumprimento de uma legislação extenuantemente debatida e utilizada pelas partes.

Como dito pelo técnico José Roberto Guimarães, ?não penso no individual. Trabalho pensando no grupo e no melhor para a seleção?. Onde um só ganha, uma coletividade toda perde.


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