Informação, dados e proteção. Analisar os limites do acesso à informação, notadamente pela LAI (Lei de Acesso à Informação), Lei 12.527/11, e a sua compatibilidade com a nova LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), Lei 13.709/18, reveste-se de complexidade tanto do ponto de vista do setor privado, como público, como forma de manter a transparência da administração dentro das bases legais justificadoras do tratamento de dados pessoais.
Neste sentido, qual é o limiar entre o acesso à informação de dados contidos nos Tribunais de Justiça e a proteção de dados? O Poder Judiciário é detentor de aproximadamente 79 milhões de processos em tramitação, contendo dados pessoais de todos os titulares que figuram nesses processos, desde as partes e seus advogados, como juízes servidores e todos que venham a intervir.
Em primeiro lugar, a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, LX, assegura: “Lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. O CDC garante aos titulares o acesso às informações referentes aos consumidores. Já a Lei de Acesso à Informação e o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) dispõem que o tratamento de dados deve respeitar a transparência, os direitos da intimidade e as liberdades e garantias individuais.
Por sua vez, o Código de Processo Civil aprovado em 2015 (Lei 13.105/15) trouxe importante inovação nos art. 195 e 196 estabelecendo que os atos processuais devem ser registrados no sistema observando o padrão aberto, acessível ao público e sem restrição de uso, promovendo a independência da plataforma computacional, sempre respeitados os casos que tramitem em segredo de Justiça, nos termos do art. 189, § 1.º, CPC.
É necessária a conciliação entre o acesso a informação, sendo este de interesse coletivo, de forma que qualquer pessoa pode fiscalizar externamente os processos considerando o princípio da publicidade dos atos judiciais, bem como, no tocante a LGPD, a proteção dos dados dos titulares que possuem a autodeterminação informativa a respeito do trânsito de suas informações.
No contexto social em que estamos inseridos, a informação se tornou muito valiosa e mudou a forma pela qual a legislação assegurava tais direitos, uma vez que o acesso se tornou muito facilitado. Surgiram Law Techs e Big Techs que prestam serviço a partir do estudo de dados para tomadas de decisões de forma assertiva por meio de algoritmos que podem fazer isso muito mais rápido do que a uma pessoa analisando bases de processos.
A extração de dados de páginas dos Tribunais por meio de API (Application Programming Interface) se tornou muito comum para obtenção de informações, considerando a velocidade para finalidade de estruturação de base de dados e análises preditivas. Percebe-se que tais soluções tecnológicas agregam valor ao negócio e fomentam o desenvolvimento de novas tecnologias com alto grau de eficiência. Ocorre que são necessários instrumentos que possibilitem esse controle para o monitoramento da finalidade de tratamento adequado à LGPD.
Uma vez disponibilizadas as informações nos sites dos Tribunais de forma pública (art. 5º, LX, CF) elas podem ser protegidas? A resposta é sim. Em que pese a transparência assegurada pela Constituição e pela LAI, a LGPD disciplina que o tratamento de dados pessoais cujo acesso é público deve considerar a finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram sua disponibilização (art.7º, §3º).
O art. 4º, I, da LAI define informação como “dados, processados ou não, que podem ser utilizados para produção e transmissão de conhecimento, contidos em qualquer meio, suporte ou formato”. O art. 8º dispõe que “é dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas”.
Referida lei está em consonância com o movimento de abrangência mundial de “Open Data” que preconiza, sobretudo em matéria governamental, a abertura na maior medida possível dos dados que interessam à sociedade, de maneira apta a viabilizar sua adequada análise por quaisquer interessados. Considerando, aqui, dados abertos como sendo aqueles que podem ser livremente usados, reutilizados e redistribuídos por qualquer pessoa.
No âmbito do Poder Judiciário, a Resolução CNJ nº 334, de 21 de setembro de 2020, instituiu o Comitê Consultivo de Dados Abertos e Proteção de Dados Pessoais para, por meio de estudos técnicos e apresentação de propostas, auxiliar o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) no desenvolvimento e na implementação de política de dados abertos compatível com a proteção de dados pessoais no âmbito do Poder Judiciário. A LGPD contemplou o CNJ como um dos 23 integrantes do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade (art. 58-A, IV) sendo, também, um dos órgãos que compõem a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (Art. 55-C, II).
Em consonância a esse entendimento, o CNJ solicitou aos órgãos do Poder Judiciário, por intermédio da Recomendação 73/2020 a respeito do acesso e uso massificado de dados, a disponibilização de APIs ao público para que os dados existentes em seus sistemas de tramitação processual e repositórios de informações de processos e provimentos judiciais possam ser acessados em formato legível por máquina.
Tal iniciativa sugere a intenção do CNJ em conciliar a Lei nº 13.709/2018, que dispõe sobre a proteção de dados pessoais, e a regra do art. 196 do Código de Processo Civil, que regulamenta a prática e a comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico. Contribuindo, dessa forma, pela compatibilidade dos sistemas, especialmente quanto ao melhor modelo de incorporação progressiva de inovações tecnológicas.
A necessária regulamentação específica pelo Poder Judiciário é essencial para evitar o tratamento ilícito dos dados pessoais e a adequação do acesso à informação judicial de dados abertos com a base legal de tratamento trazida na Lei Geral de Proteção de Dados. A título de exemplo, a depender da finalidade do uso dos dados, a LGPD assegura no art. 7º, incs. V, VI e IX, o tratamento para execução de contrato ou de procedimentos preliminares relacionados a contrato do qual seja parte o titular; para o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral; e, quando necessário, para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiros, exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais.
Portanto, a publicidade dos atos processuais e a transparência são princípios fundamentais para o controle das atividades do Poder Judiciário. Os benefícios do acesso a essas informações, em formato legível por máquina, é um estímulo ao desenvolvimento de novas tecnologias e aprimoramento da própria atividade jurisdicional. Desde que seja incorporada metodologia de autodeterminação informativa do titular pelo acesso massificado às informações contidas em processos judiciais com a adequação da base legal e finalidade.
Nas palavras do ministro do STJ, Ricardo Villa Bôas Cueva, “O uso da tecnologia nos processos judiciais não é somente uma realidade, mas uma necessidade”.
Rodrigo Toler, especialista em Processo Civil, Direito Digital e Proteção de Dados do escritório Reis Advogados (SP) e associado ao Centro de Estudos Avançados de Processo – Ceapro